sábado, março 11, 2017

Sobre sentimentos, intimidade e jogadores que "não conseguem lidar"

Era sábado. O jogo já estava rolando com o mesmo grupo a uns três meses. Religiosamente, todo final de semana. O Gustavo narrando, duas jogadoras e três jogadores. O grupo todo era de elfos do espaço, estilo spelljammer. Campanha longa que começou com o personagens se recuperando de um acidente de nave, sem memórias.
O contexto é pouco importante, o que importa é que os players conviviam a um tempo razoável. E que nessa de recuperar memórias referencias à campanha anterior (que havia durado pouco mais de um ano) foram aparecendo.

A personagem da outra jogadora tinha um - como dizem esses jovens - 'crush' (NPC) e eventualmente aconteceu a cena em que eles ficaram sozinhos trocando confissões e memórias do passado a cena podia, ou não, se encaminhar para um beijo e algo além e me parecia importante para definir a relação dos personagens saber como se comportariam a respeito dessas possibilidades. Me parece que a jogadora parecia interessada em fazer a cena, um pouco sem jeito mas interessada.
A mesa foi acometida de uma inquietação extrema, em especial por parte de dois jogadores. Rindo e fazendo piadas. "Vai", "Não vai", "Pegadora", "mas fulano não era seu filho adotivo?", falação que atravessava a cena, cortava o clima e deixava a jogadora sem jeito. As descrições foram substituídas por um "tem beijo sim" muito resumido.

Digo abertamente que se fosse eu jogando eu ficaria chateada. Os guris não gostam de cena fofa? Paciência, eu fico quieta e deixo eles jogarem seus combates, sequestros e eventuais torturas. Acho que se comportar na cena dos outros, por mais que ela não seja interessante, é o minimo. Uma coisa é eu ter vergonha de detalhar a cena por não estar confortável, tudo bem, resume e pula. Outra coisa é eu querer fazer a cena e não conseguir porque o grupo não consegue lidar com um beijo. 

segunda-feira, março 06, 2017

Playing Experience - Vasthara Alyae

Art by len-yan

Esse jogo começou com três jogadores. Aconteceu que um personagem morreu no terceiro ou quarto jogo, o respectivo player acabou saindo da mesa. 
Nesse evento eu me vi em uma mesa que tinha apenas duas jogadoras e cheguei a conclusão que era o momento de chamar outra jogadora.
O resto da campanha foi só com o narrador e jogadoras, mesmo quando tivemos participações especiais, sempre jogadoras.

Interessante porque eu sempre quis jogar um jogo só com garotas. Desejo atendido, eu também conheci o lado ruim dessa segregação.

Vamos falar da Vasthara. 

Vasthara é uma Wizard/Incantatrix. O jogo começou no nível 7 (quando os drow fazem seu ordálio e viram adultos) e minha personagem terminou no nível 13. Muito longe do que eu pretendia mas... faz parte. Pelo lado bom, essa campanha teve começo, meio e fim. A história ficou bem fechada e muito interessante.

Vasthara é a afilhada mais velha de Imrae Alyae. Sua mãe Miz'rey Alyae desapareceu em uma missão quando as filhas eram crianças. 
Junto com as irmãs, Maya e Ilyra, e as primas Anastrianna e Simikei (filhas da Khaless Alyae), Vasthara é mandada para as fronteiras de UndrekThoz, onde a pequena família Alyae pretende estabelecer sua primeira cidade
Parte do jogo é sobre as relações com as outras famílias da região e a complexidade politica de se estabelecer uma casa na sociedade drow.
Elkira, Belgos e Dan Alyae em edição especial de natal que foi
presente para o grupo. Arte da Sandra Messias.

Cada uma dessas personagens vai para a nova cidade com um guarda costas (e potencial "mate" já que é meio esperado que tenham filhos, ou não. O jogo teve várias conversas interessantes a respeito do matriarcado). Esses NPCs eram controlados pelas jogadoras durante o combate mas o narrador que os controlava o resto do tempo e fazia as falas deles.

Eu gosto de jogos com muitos NPCs (minha experiência diz que, no geral, as jogadoras gostam mais de NPCs do que os jogadores), na verdade eu posso ficar assistindo os NPCs agirem e quase não jogar, se bobear.
Resumo em dizer que eram três figuras interessantes; Elkira é um barbarian surtado, Belgos é um Lolth Touched que foi expulso da academia arcana levando alguns outros drow consigo no processo e acabou virando rogue e Dan é um guerreiro arqueiro bem sucedido comparado aos outros dois.
Uma peculiaridade da casa Alyae é que seus drow tem sangue de fada, a fundadora da casa era uma Gloura meio drow que tem trabalhado para aproximar a família, e os drow, da corte unseelie (minha personagem em uma campanha que jogamos anos antes). Com isso a família ganhou várias características feéricas, muitos dos seus membros tem asas, DR/ferro frio, spell like além das normais dos drow etc.

Uma parte do jogo era sobre controlar os machos malucos que estavam com o grupo. Amei, o Belgos era totalmente doido, imune a medo e inteligente. É o tipo de desafio social que eu gosto. A Vasthara estava mais interessada em outros NPCs, mais certinhos da cabeça, mas acho que chegamos em um acordo sobre isso. :P
Em um momento do jogo a Vasthara mandou uma carta para o Belgos, porque apesar dele morar na casa em frente conversar não era fácil, e a resposta veio rápida, acida e publica... incompreendido ele, tadinho.

Outra parte do jogo era sobre fazer alianças, em estilo Game of Thrones, já que eramos uma casa fraca, em ascensão e logo descobrimos que tínhamos um inimigo particularmente interessado em nos destruir (e os motivos só viriam no final do jogo). No meu ponto de vista as garotas foram tão 'normais' nisso quanto os caras. Sobrevivemos a coisas bem tensas mas fizemos bem poucos amigos, ainda matamos uns e sacaneamos outros no processo de sobreviver... faz parte, drow.
A Vasthara trouxe uns Armgo para a cidade, que acabaram se mostrando realmente uteis e no fim foram, de certa forma, a melhor aliança em alguns momentos, especialmente por serem uma família maior e mais intimidadora. Foi sorte, Vasthara os convidou por puro interesse no guerreiro não maluco e amigável deles, admito.

Sobre a experiência de jogo (ou, o ponto desse post):

Divulgação: Drow Treachery card by Mike Faille
Copyright Wizards Of The Coast LLC
Foi divertido. Muito divertido! 
Foi extremamente confortável jogar só com as meninas, muito. 
Ao contrário do que eu esperava ainda houve alguma inquietação para lidar com as relações dos personagens mas, de forma mais ou menos explicita, acredito que todas as personagens fizeram o que tinham que fazer. Cada um ficou sem jeito, do próprio jeito, nas próprias cenas sem que a intervenção do grupo atrapalhasse a possibilidade da cena. Em outro post eu conto o caso sobre isso que rolou no grupo misto e me incomodou muito.

Eu sou a pessoa chata que fica nervosa e ansiosa e atravessa o RolePlay dos outros. Foi mal! 
Isso só acontece porque o envolvimento com o personagem e com a situação é mais profundo que matar, pilhar, coletar XP e comprar item. Hurray!

Vasthara não conseguiu ter um bebê durante o jogo. Eu tentei.

Acho que para um jogo que envolvia administrar uma cidade esse jogo deu uma ótima sensação de lugar crescendo, causa e consequência e organização pública.
Na ultima sessão eu fui surpreendida com a possibilidade da Vasthara se tornar matriarca da família na região. A avó dela, e então matriarca, foi morta e Vasthara era a filha mais velha, da filha mais velha (no começo do jogo nos rolamos as idades das irmãs). Foi legal. 

sexta-feira, março 03, 2017

Sasayaki

Arte by Guweiz
Em roupas negras e já sem os mons é chegado o momento de uma última caminhada por Otosan Uchi, em direção ao portão norte. Deixar a inner city já revela contrastes que ela não observava a muitos anos. Sua rota faz um leve desvio, a noroeste há um pequeno distrito governado pelo Escorpião. Ali esconde-se um templo à Hofukushu, onde a samuraiko entra a passos ligeiros para rapidamente ajoelhar-se diante da estátua de estética sinuosa tipicamente escorpiã.


- O-Hofukushu-sama, por favor guie a minha jornada. Que os inocentes sejam poupados da minha ira para que ela possa recair toda sobre aqueles que compartilham o sangue e os modos de Mirumoto Onai. Eu não devo esquecer, ou perdoar, até que seja feita justiça que apazigue meu espírito.


Ela cumprimenta a estátua três vezes, em uma reverência que leva a testa até o chão, oferece um tablete de incenso, passa alguns instantes ali juntando daquelas forças que precisa para levantar e continuar uma viagem que será longa e desagradável. Após um último cumprimento retira-se em silêncio.


… … …


Chove, a água pesa nas roupas e parece tornar as cordas do waraji cada vez mais apertadas, ou talvez sejam os pés que estejam inchados da longa caminhada. As pernas doem. Já úmidas algumas mechas de cabelo escapam do jingaza. Era uma água fria que deixava as vestes  pesadas aumentando o fardo da carga. Estava cansada, odiava estradas. Se lembrava da sensação que teve quando criança, ao perder-se na estrada esperando voltar para casa depois de ‘fugir’ de Kyuden Bayushi. Fora resgatada por um bushi naquela ocasião. Naquela ocasião era uma criança do Escorpião.
Agora… sabe-se lá o que era agora. Um ronin cortesão pareceria apenas uma piada. Não importava o que quer que ela fosse e o que quer que fosse fazer, sabia que teria que fazer sozinha. Às vezes sentia-se tola, seu pedido para deixar o clã custava caro e lhe tolherá todas as possibilidades de uma viagem confortável. Ainda assim, sabia que havia feito uma escolha que era apenas sua, não queria ajuda. Outra parte de si ainda encontrava conflito entre proteger o Crane, ao deixá-lo para trás como havia feito, ou valer-se do dinheiro dele para alcançar o que desejava. Embora houvesse conflito, a decisão já estava feita, e o Crane não poderia ser implicado em o que quer que ela fizesse agora… nem o Escorpião.


Além do jingaza a água caia como uma cortina densa o bastante para nublar as formas da estrada. Os joelhos fraquejaram, tudo doía, conforme o corpo pendeu a mão foi obrigada a levantar-se encontrando apoio no tronco áspero de uma árvore. Doeu.
Virou-se apoiando as costas na árvore. Trazendo a mão junto do rosto via um arranhão. Não sangrava como ela esperava. A pele antes delicada já tinha os calos e a textura esperada nas mãos de alguém iniciado nas ‘artes’ da espada.
Fitou a própria mão por longos instantes, esperando, sentindo arder quando a água da chuva escorria por ali mas, nada de sangue.


Hokora é um pequeno santuário, em geral fica a beira das
estradas nas proximidades de grandes santuários. 
Quando levantou o rosto pode avistar um hokora ao lado da estrada. Ela se aproximou uns passos para encontrar ali os símbolos das sete fortunas. A visão foi o bastante para colocar-lhe  o âmago em chamas.
Correu para junto do pequeno santuário com raiva e força que pareciam provir do jigoku. As mão apoiadas na base do telhado, ela empurrou. A pedra balançou mas não cedeu. Ela rangeu os dentes em um grito de esforço que certamente poderia ser ouvido ao longo da estrada, e insistiu forçando até jogar o telhado no chão.
Podia agora olhar as estátuas, de cima, sem ter que se ajoelhar na estrada, apontou-lhes o dedo de forma acusadora e firme:

-Vocês! Vocês me abandonaram e abandonaram a verdade. Vocês viram tudo e deixaram aquilo acontecer!

Chutou as estátuas derrubando parte delas conforme as lágrimas lhe tomavam os olhos e se misturando a chuva. Continuava a derrubar as estátuas com chutes menos enérgicos, menos violentos a cada golpe, mas incansáveis. Continuou até que todas as sete estivessem no chão. A decisão na voz aos poucos era substituída por um notável desespero durante esse trabalho:

-Vocês mentiram. Vocês não estão olhando nada… não se importam com nada…


Viu as estátuas espalhadas no chão, não havia sobrado nada para derrubar, nada para dizer, e ainda assim seus sentimentos não estavam em paz. Conforme perdia as forças do momento não conseguia mais aguentar o peso das roupas e da mochila molhada nos ombros, a dor nas pernas e pés. Sentava-se lentamente, sem a elegância de antes, com o corpo escorado no que havia sobrado do hokora. E chorava, chorava copiosamente esperando que as lágrimas pudessem carregar para fora tudo o que sentia. Mas elas não podiam…

As Sete Fortunas